Uma mulher que deixa seus filhos para trás; uma jovem que perdeu a mãe para o câncer; outro que persegue a arte ou uma oportunidade de trabalho... E partimos, migramos. Viver no país que está sendo destruído, decidir ir embora, partir, tentar se integrar, reconstruir sem sentir saudades. Somos mais de 5 milhões com uma marca em comum: a migração impactou nossa saúde mental.
Texto: María Laura Chang, Johanna Osorio Herrera, Héctor Villa León*
* Jornalistas migrantes venezuelanos radicados na Argentina, na Colômbia e no Peru.
Migrar é mais do que se mudar de um lugar para outro. É deixar para trás o que conhece, é enfrentar a mudança. É, muitas vezes, estar sozinho, sentir que cortaram suas raízes. É adaptação, preocupação e tranquilidade, tristeza e alegria: incerteza. Você pode acordar feliz um dia porque a vida se parece muito com a que tinha ou com o que sonhava, e se ver à tarde chorando de nostalgia, porque ficou sem trabalho, porque a xenofobia o persegue ou simplesmente porque sente falta do que não voltará.
Nós sabemos disso. Fazemos parte das 5 milhões 667 mil 835 pessoas que deixaram a Venezuela para fugir da violência, da insegurança, das ameaças, da falta de alimentos, de remédios e serviços essenciais, de acordo com os dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR).
Ansiedade, depressão e outras alterações graves na saúde mental que se originam da incapacidade de integração; que acabam com a tranquilidade e que podem propiciar instabilidade, dor, vícios, violência e até mesmo a morte, são algumas das consequências da nossa saída forçada, decidida, sorrateira.
Adriana Caldera soube que devia deixar a Venezuela quando seu primeiro bebê morreu, no mesmo dia do seu nascimento. Era outubro de 2016. Ela chegou ao hospital em trabalho de parto, mas por falta de espaço lhe pediram para aguardar. A demora foi excessiva. O bebê estava com o cordão umbilical ao redor do pescoço e, quando finalmente a atenderam, o coração do seu filho já não batia. Naquele momento começou a planejar sua saída do país. Em março de 2019, em meio ao apagão nacional que escureceu a Venezuela por mais de 140 horas, fez sua mala guiada pela lanterna do celular e partiu para a Colômbia com o marido.
Alguns dias, a família de AJ só comia as mangas que caíam das árvores. Mas a fome não foi o motivo da sua partida, mas sim a falta de arte. Por ser clarinetista e vendo como a vida cultural do seu país se extinguia, sua universidade sendo destruída, optou por partir.
Tanto AJ — natural do Estado de Zulia, no oeste da Venezuela— como Adriana — de Falcón, no nordeste — viviam desgastados emocionalmente. Ao longo da sua vida estudantil, AJ experimentou mais de 10 roubos ou tentativas de roubos sempre de forma violenta. Adriana, por sua vez, temia ser mãe em um país com um sistema de saúde debilitado, com hospitais sem vaga, insumos ou pessoal. Seu temor era justificado: segundo o Panorama de Segurança Alimentar e Nutricional na América Latina e no Caribe 2019, a Venezuela é o quarto país da região com a maior taxa de mortalidade neonatal, com 19,8 mortes a cada 1.000 nascidos vivos, atrás somente do Haiti, da Dominica e da República Dominicana.
Falamos também do país mais pobre da América Latina, segundo a Pesquisa Nacional de Condições de Vida 2019-2020 que calcula que, 79,3% daqueles que vivem na Venezuela não têm como bancar a cesta básica como resultado de uma taxa inflacionária que em 2018 chegou a 65.000% e, embora nos anos seguintes tenha caído para 6.500%, a fome assolou a população. A arepa, o prato mais popular, tornou-se um luxo impagável para a maioria e, nos momentos mais críticos, era comum ver famílias inteiras vasculhando lixões das cidades em busca de restos de comida.
O grande apagão de março de 2019 selou todos os temores. “Nos alertaram que o país estava à beira do colapso, mas ninguém imaginava que a situação seria tão grave. O país apagou e a população foi tomada por uma enorme angústia não só pela falta de serviços, mas também pela falta de comunicação”, explica Yorelis Acosta. Houve desespero e saques. Reinou a desesperança.
Como esses fenômenos impactam a saúde mental da população? Cristal Palacios, psicóloga clínica, pesquisadora e fundadora da rede Psicodiáspora aponta que existe uma queda na qualidade de vida que não se resume a um único evento traumático, mas que em conjunto nos afeta e muitas vezes gera estresse crônico e estresse pós-traumático.
“Começamos a desconfiar uns dos outros. A família se fechou em si mesma porque é a única forma de se proteger quando tudo está contra ela”, aponta a especialista, que descreve a deterioração das relações sociais como resultado de uma vivência coletiva marcada pela crise que afeta o bem-estar coletivo.
Um problema que Yorelis Acosta descreve em seu artigo Sofrimento Psicossocial do século XXI: Venezuela e a Revolução como um evento “traumático-catastrófico”, com efeitos psicossociais nos níveis individual e social. “Viver por longos períodos em contextos violentos pode potencializar distúrbios psicológicos, cronificá-los e até projetá-los transgeracionalmente”, afirma a especialista.
Tudo isso sugere que quando estamos inseridos nessas condições adversas, repletos de medos e angústias que são gerados por não termos nossas necessidades básicas garantidas, podemos normalizar todos esses problemas, mas internamente tudo vai se acumulando e “se internaliza tanto no nível neurológico como no nível cognitivo emocional e, eventualmente, resultam nesses sintomas de estresse pós-traumático”, acrescenta Acosta.
Sintomas que nos levam a viver ancorados em momentos do passado e que ultrapassam nossas capacidades de gestão emocional, diz Palacios, para quem, no caso dos migrantes da Venezuela, esses momentos não são necessariamente situações singulares, mas ocorrem pelo acúmulo de eventos estressantes vividos no país e que propiciaram a hipervigilância, a dificuldade para dormir ou comer, pensamentos invasivos ou flashbacks, a dificuldade para liberar mentalmente o pensamento da Venezuela e, às vezes, comportamentos evasivos de pessoas que não querem saber nada do país, mas que, na realidade, não conseguiram se desconectar porque continuam ancoradas nessas vivências que as marcaram.
"Os eventos passados são construídos em um grande evento que dificulta nossa vida cotidiana", diz a psicóloga e especialista em migração Constanza Armas.
Os números não demoraram para refletir a vulnerabilidade social decorrente da situação econômica. O Observatório Venezuelano de Violência (OVV) fez um estudo para determinar a incidência das crises nos suicídios ocorridos entre outubro de 2019 e março de 2020. Apesar de não existirem dados oficiais, a pesquisa realizada nesse período comprovou os dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) e de instituições como a Corporação da Saúde (Corposalud) de alguns Estados do país.
“A taxa de suicídios entre outubro de 2019 e março de 2020 pode ter oscilado entre 9,3 e 9,7 suicídios a cada 100 mil habitantes. E, segundo os últimos dados oficiais registrados pelo Estado, a taxa era de 3 suicídios no mesmo período. Vimos um aumento de mais de duas vezes e condiz com a realidade que estamos vivendo”, diz Gustavo Páez, coordenador do OVV na cidade de Mérida e responsável pelo projeto.
El Activista de DD.HH del Zulia Alejandro Jesús Urdaneta, se suicidó la tarde de ayer luego de postear en sus historias un texto corto que expresaba "Los Quiero a todos, espero sean felices". Se desconoce hasta el momento los motivos que lo habrían llevado a cometer suicidio.👇 pic.twitter.com/EaYrLwtvLF
— Bertilio Pérez Chávez. (@BertilioPerezCH) April 15, 2021
Até o momento não há atualização do estudo, mas o OVV rastreou os suicídios no país durante os últimos três anos por meio de ocorrências policiais e notas publicadas nos meios de comunicação. Uma situação que a pandemia pela Covid-19 agravou em 2020, pois houve um aumento de 150% entre os meses de abril e maio. “As pessoas começaram a ter medo de se contagiar, de morrer, de ficar sem recursos financeiros. As empresas e as instituições fecharam, as economias foram gastas e isso pode ter aumentado os suicídios”, diz Páez.
Para 2021, os números não refletem uma melhora. Apenas nos primeiros quatro meses deste ano, foram registrados 108 suicídios em todo o país, enquanto no ano passado foram 281, ou seja, quase 40% do total de casos de 2020.
Quem pesquisa o tema aponta uma correlação direta com a crise venezuelana e a emergência sanitária. “Estamos há mais de um ano na pandemia. 7% da frota de ônibus está funcionando. Você não pode levar uma vida normal, há meses em que os cortes de energia diminuem, mas há outros em que são 8, 10, 12, 15 horas ou mais. Não há continuidade no fornecimento de gás de cozinha. A saúde está em frangalhos. Ficar doente no país é um luxo, você precisa ser quase milionário”, comenta o especialista.
Simultaneamente, tem havido um aumento da criminalidade. Os últimos números indicam que apenas em 2020 morreram 11.891 pessoas de forma violenta, de acordo com o Observatório Venezuelano da Violência (OVV).
Um grande diferencial da diáspora venezuelana em relação a outros países da região como Equador, Peru ou México foi a criação de uma geração pioneira de migrantes. Em sua história recente, a Venezuela sempre foi um país receptor, nunca um país expulsor: no final da década de 1940 e início da década de 1950, o país recebeu imigrantes espanhóis, italianos e portugueses que fugiam da crise do pós-guerra; mais tarde, na década de 1970, o aumento progressivo do preço do petróleo favoreceu novamente a imigração, mas dessa vez proveniente da América Central e do Sul. Não existia uma cultura de emigração, explica Constanza Armas.
Esse é o caso de Mariela Inojosa, jornalista natural do Estado litorâneo de Vargas, que emigrou com o marido para o Uruguai em 2019, depois de mais de dois anos de planejamento. Anteriormente, seu cunhado, sua irmã e a mãe de ambas tinham emigrado para o Peru. Mas, com a fuga para o Uruguai, as irmãs se reencontraram nesse país, e a mãe ficou sozinha no Peru. Antes da crise na Venezuela, nenhum membro da sua família tinha sido migrante.
A inexperiência faz com que seja muito mais difícil desenterrar as raízes no nosso lugar de origem, porque não temos referências próximas. Esse processo de integração e o famoso “começar do zero” é mais difícil para nós do que para a segunda e terceira gerações de migrantes que tendem a tecer redes de apoio ou simplesmente estão acostumados a conhecer uma história de êxodo por meio de relatos familiares, experiências próximas, construindo, assim, uma cultura migrante.
Mariela perdeu a mãe em abril de 2021 por Covid-19. Ela não pôde se despedir. “Passei três anos sem ver minha mãe, nesse contexto migratório, nesse contexto de crise humanitária muito forte. Saber que não a verei de novo foi a coisa mais difícil de superar desde que emigrei. A migração em todos os sentidos é um luto e, em meio a essa pandemia, se junta a outras coisas. Sinto que não só perdi minha mãe, mas também perdi meu país”.
Fugir é tão difícil quanto chegar a um novo destino: você precisa aprender a [sobre]viver novamente. Com uma gravidez avançada, Adriana Rivas, de 36 anos, deixou a Venezuela com o marido. O estresse da viagem provocou um sangramento ao cruzar a fronteira. Embora estivesse preocupada com a saúde do bebê, seu objetivo era claro. Continuou o trajeto via terrestre. Primeiro pela Colômbia, depois pelo Equador e Peru. Pôde receber atendimento médico e, apesar da recomendação de ficar em repouso, o casal não parou até chegar ao seu destino, o Chile, onde o sangramento finalmente cessou.
Aqueles que decidem migrar se arriscam durante o deslocamento a sofrer abusos, como a exigência de pagamentos, o confisco dos pertences ou a destruição de documentos; o translado por pontos não autorizados — conhecidos como trochas—; o risco de violência e abuso sexual, roubo ou disponibilidade limitada de recursos financeiros, cita Ligia Bolívar, em seu relatório Saúde mental de venezuelanos em situação de mobilidade.
Bryant González, astrônomo amador de Caracas, de 31 anos, chegou a Cúcuta depois de gastar todo o seu dinheiro com a passagem até a fronteira. Ali se ofereceu para dar aula para crianças em uma instituição local, em troca de hospedagem e dinheiro para se manter. Após o acordo de cinco dias, enviou uma proposta semelhante a outro colégio em Bucaramanga, que aceitou, mas apenas lhe ofereceu alimento. Bryant só tinha dinheiro para pagar a passagem para Pamplona. Para continuar, precisou percorrer os 60 quilômetros que separam as duas cidades a pé, pegando carona e pernoitando em postos de gasolina. Duas semanas depois, a odisséia se repetiria, mas agora para fazer os quase 500 quilômetros que separam Bucaramanga de Bogotá.
É apenas o começo. Com o desafio do translado vêm o choque cultural, a xenofobia, a ausência de redes de apoio, a exigência de diversos documentos, as mudanças nas leis, as expectativas frustradas, a discriminação no trabalho, os maus-tratos e a violência, diz o relatório de Bolívar.
“Minha rotina era trabalhar, comer, dormir e chorar... Era um ciclo sem fim(...). Me sentia à deriva”, lembra Alba Solórzano, uma jovem do Estado de Aragua.
Como ela, outra jovem de Nova York lembra que começou a sentir que não pertencia a lugar algum: “Estar sozinha em um processo migratório, sem residência, sem saber se amanhã deve partir e deixar tudo outra vez, com medos e incertezas por não saber se conseguirei me desenvolver em outro idioma, outras culturas, sentir angústia por ter de seguir em frente e ter o peso de ajudar sua família financeiramente”.
"Meu ex-chefe me chamou de ‘morta de fome’. Passei um ano comendo arroz com lentilha. Sei o que é passar fome, mas te falarem isso de forma tão grosseira dói... e muito”, lembra outra jovem venezuelana moradora de Buenos Aires.
Os depoimentos anteriores são resultado de uma pesquisa pública que realizamos pelas redes sociais com migrantes da Venezuela entre 27 de abril e 9 de maio de 2021. Dos 183 participantes, 90% (164) consideraram que haviam sofrido de ansiedade, tristeza ou depressão durante o processo migratório. As emoções predominantes nas pessoas consultadas foram tristeza (16%), ansiedade, angústia, incerteza (14%), tranquilidade (13,6%) e alegria (8,7%).
Resultados da pesquisa
Esse leque emoções se projeta na saúde mental em um espectro que vai desde a tranquilidade sentida por Adriana Caldera ao poder dar à luz à sua segunda bebê na Colômbia, longe do pesadelo dos hospitais venezuelanos; aos ataques de pânico de Bryant, que durante seu percurso pela América Latina temia morrer longe de casa; ou o caso de Félix, que ficou um ano sem sair da sua nova casa no Equador, por falta de um documento de identidade que lhe permitisse entrar na universidade ou procurar trabalho. AJ precisou ser internado em um hospital psiquiátrico, após ideações suicidas.
As estatísticas do Ministério da Saúde da Colômbia, o país que mais recebe migrantes da Venezuela - 1.742.927 -, são o reflexo dessa situação. O número de migrantes venezuelanos atendidos pelos serviços de saúde com o diagnóstico principal de transtornos mentais e do comportamento passou de 302 pessoas em 2017 para 7.452 pessoas em 2020, um aumento de 2.467,55% em quatro anos. Da mesma forma, o número de atendimentos prestados a migrantes da Venezuela pelo mesmo diagnóstico passou de 1.102 consultas para 16.813 no mesmo período.
Serviços de saúde na Colômbia
Orçamento da saúde na Colômbia
(Bilhões de pesos)
Outra pesquisa para conhecer a saúde da população migrante e refugiada venezuelana na Colômbia - realizada pela Profamilia em cinco departamentos durante 2019 - revelou que durante 2019 a ansiedade foi a principal causa da procura por serviços de saúde mental pelos migrantes da Venezuela.
Uma situação semelhante ocorre no Peru, país que recebeu 1.049.970 migrantes até julho de 2021. Ali, a Universidade do Pacífico (UP) realizou uma pesquisa entre 2019 e 2020 que consistiu em entrevistar 800 venezuelanos em Tumbes, cidade fronteiriça. “O estudo mediu os desafios e as dificuldades encontrados, os motivos pelos quais escolheram o Peru, e tínhamos uma seção para saúde mental na qual perguntamos se tinham apresentado sintomas de depressão ou ansiedade”, aponta Marta Luzes, analista e pesquisadora afiliada da UP.
A primeira comparação apresentada foi feita entre os meses de abril e agosto de 2019, quando ocorreu a mudança na política migratória e o visto humanitário passou a ser requisito necessário para entrar no Peru. “Isso aumentou a irregularidade e os níveis de ansiedade e depressão intensificaram”, comenta a especialista.
Durante esses dias era possível observar as longas filas de migrantes querendo entrar no país, esperando a aprovação do visto humanitário ou o atendimento de um funcionário da Comissão de Refugiados para solicitar proteção internacional no país. “Os migrantes foram levados a atravessar irregularmente, porque não tinham passaporte, o visto humanitário demorava para ser processado”, diz Luzes.
Esse foi o caso de Christian Maestre, que emigrou com toda a família e teve de passar mais de 12 horas em pleno inverno sul-americano em uma fila em Rumichaca (fronteira entre o Equador e a Colômbia) para poder entrar. Ao se aproximar do local de acesso, descobriu que havia duas filas: uma para estrangeiros de outras nacionalidades e outra mais longa apenas para venezuelanos.
“Suponho que há pessoas que passam por coisas piores, mas uma viagem de 5 dias foi uma catástrofe. Embora possa conhecer pessoas e ter um rumo, isso não te prepara para quando as vicissitudes se apresentam no caminho”, diz.
“Dois a cada três venezuelanos migrantes na Colômbia têm sua saúde mental afetada”, garante Andrés Cubillos, professor do Instituto de Saúde Pública da Universidade Javeriana, com mais de 15 anos de experiência em áreas relacionadas à política social, às migrações e à saúde pública e mental. “As migrações no caso da Venezuela são mais de natureza familiar do que individuais, o que afeta ainda mais a saúde mental da população, porque muitas pessoas não conseguem proteger as condições de vida do seu entorno”, explica o especialista que desenvolve uma pesquisa sobre o tema com a Universidade da Flórida Central.
Mas os sintomas de um transtorno mental nem sempre são meramente emocionais. Cubillos explica que alguns sintomas físicos podem ser um indício do problema. “Dor nas costas, dor de cabeça, dor no pescoço, dificuldade para dormir são sinais pouco estudados porque o cuidado com a saúde se baseia na condição física”, diz.
É o caso de Félix, um jovem natural da cidade andina de Mérida, que chegou ao Equador com 18 anos e com a segurança de morar com os pais. Desde o momento em que pôs os pés em Quito, garante ter começado a sentir dores nas costas sem motivo, que não paravam. “Agora entendo que os problemas físicos derivam dos psicológicos”, diz. Ele também admite ter sentido ansiedade e vários episódios depressivos fortes durante todo seu processo migratório. Ele conseguiu receber atendimento psicológico por ser estudante universitário, mas está ansioso para começar a trabalhar para pagar por um atendimento melhor.
“Nossa pesquisa indica que os sintomas estão aumentando e não aparecem apenas durante o processo migratório, mas se agravam quando chegam ao país devido à rejeição, à discriminação, à xenofobia”, afirma Cubillos. Por outro lado, considera que a falta de políticas adequadas voltadas à população migrante a afeta muito mais. “Não temos nem ao menos primeiros socorros para a saúde mental. Sei que nos hospitais de Cúcuta são mínimos: eles retêm a pessoa que chega por cerca de dois dias e depois a pessoa precisa seguir seu caminho”.
“Tenho períodos em que não quero sair da cama, não quero falar com ninguém, penso em coisas e situações, estou sempre com fome, mas também tenho falta de apetite, insônia e sonolência, crises de estresse, episódios de crises de enxaqueca”, é a experiência relatada por uma jovem de 21 anos, natural de Maracaibo e que hoje vive no Chile.
Para Luz Ángela Rojas-Bernal, psiquiatra e professora da Faculdade de Saúde na Universidade do Sul da Colômbia, essa atenção deficiente em saúde mental depende de três fatores: estigmatização das doenças mentais, falta de vontade política e carência de recursos monetários e humanos. “Embora existam estudos sobre a prevalência de transtornos mentais nessas populações [migrantes], muitas permanecem no papel, porque não há apoio político suficiente para transformá-los em políticas públicas. (...) A Lei de Saúde Mental [na Colômbia] diz coisas muito bonitas e que estão muito bem escritas, mas que na prática não ocorrem”. A especialista afirma ainda que a distribuição de psicólogos e psiquiatras não é equitativa em termos de densidade demográfica nem de necessidades.
O orçamento para a saúde mental na Colômbia corrobora o anterior: para 2017, foi destinado apenas 1,63% do orçamento da saúde para assistência à saúde mental e convivência social. Um valor que em 2020 diminuiu para 0,30% do orçamento. No Peru, o segundo país que mais recebe migrantes venezuelanos, a situação não é muito diferente. De acordo com o portal Transparência Econômica, em 2020 apenas 0,50% do orçamento geral foi destinado à saúde mental.
Orçamento para saúde mental na Colômbia e Peru
“Sobre a Venezuela eu tenho um complexo. Às vezes não quero saber nada do país. Tenho uma rejeição bastante forte, mas acontece que meu irmão, minha avó e meus tios ainda estão lá”, diz Víctor Reinosa, comunicador social que vive na cidade de Buenos Aires.
“Migrar implica renúncias, despedidas e em um quadro normal, isso que chamamos de luto migratório, é um luto totalmente distinto daquele que associamos à morte de um ente querido”, explica Yorelis Acosta, psicóloga clínica e social do Centro de Desenvolvimento e Estudos da Universidade Central da Venezuela (Cendes).
“Este luto se refere ao desenraizamento da família, às mudanças de identidade, estimula sentimentos de ambivalência: você pode ter uma expectativa positiva porque vai buscar um novo modo de vida ou também pode sentir tristeza por estar deixando sua família, suas lembranças, sua história", comenta Acosta.
“É como se separar ainda apaixonado”. Foi assim que César Soledad, de 41 anos, que atualmente mora no Chile, descreveu sua situação emocional. “Seu país te machuca, você sente falta do seu povo e sofre pelos que vivem lá”. Para Andrés Vale, a situação é mais extrema, pois a separação da Venezuela é total. “Sinto que a odeio e isso não me permite sentir que me encaixo no novo lugar em que vivo”, diz o jovem de 23 anos que agora mora no Equador.
Trata-se de um luto que começa antes mesmo de partir, segundo Constanza Armas: “Chegam ao país de refúgio perdendo tudo o que construíram na Venezuela e essa situação de perda representa um luto, mas esse luto já vinha se desenrolando na Venezuela, porque lá começaram a perder seu status, suas redes e suas possibilidades de desenvolvimento por causa da crise, e já conheciam esse discurso associado à perda, mas ele se torna mais agudo”.
Por exemplo, Adriana Rivas deixou de ter uma exitosa carreira no jornalismo de entretenimento, como relações públicas e de fazer assessoria de imprensa para importantes grupos artísticos, para vender bananas para poder viver, alimentar os filhos e economizar para poder migrar.
Os migrantes podem enfrentar barreiras em seu processo de adaptação, porque precisam desenvolver algumas habilidades e forças interiores, como a perseverança, a força emocional e ser aberto às mudanças, diz Acosta. “É preciso deixar de lado sua história, integrar-se, ser grato e ter a capacidade de começar do zero, e se não tiver planos ou redes de apoio emocional, psicológico e financeiro, esse processo pode gerar transtornos emocionais”, comenta.
Além disso, garante que não estar regularizado pode desencadear ansiedade quanto ao futuro ou à permanência do migrante no país.
Como aconteceu com Christian Maestre, originário do Estado de Monagas, região nordeste do país, que em 2018, quando já residia em Arequipa, no sul do Peru, precisava expedir seus antecedentes criminais para poder regularizar sua permanência. Porém, devido a um erro nos dados, o funcionário afirmou que ele teria de pagar novamente 20 dólares pelo trâmite. Sem dinheiro, Christian sentiu que seu coração ia explodir. “Pedi para uma vizinha me ajudar. Ela tirou o dinheiro do bolso para solicitar o voucher com os dados corretos no banco e assim pude finalizar o trâmite”.
“Existir, ter identificação, é ser visível e a visibilidade promove a saúde mental”, conclui Contanza Armas, que advoga por políticas públicas para promover a integração.
Ficar trancado em casa piorou a já conturbada relação de AJ com seu parceiro, e a violência começou a aumentar até se tornar insuportável. Ele comprendeu isso depois de participar virtualmente de uma das oficinas de grupo sobre violência de gênero na pandemia oferecida pela Alianza por Venezuela. As psicólogas, ao ouvi-lo, sugeriram que procurasse ajuda profissional imediatamente, pois a violência psicológica a que foi exposto agravou sua depressão e começaram a surgir ideias suicidas.
Foi assim que chegou ao setor de Psiquiatria do Hospital Central de San Isidro, onde pouco importava que a palavra estrangeiro aparecesse em letras vermelhas no seu documento de identidade, pois na Argentina a Lei de Migrações é clara em seu artigo 6, garantindo o acesso igualitário aos imigrantes e suas famílias nas mesmas condições de proteção, amparo e direitos de que gozam os cidadãos.
Apesar disso, foi obrigado a se manter recluso durante o fim de semana inteiro sem a possibilidade de avisar ninguém sobre o seu paradeiro: “eles não respeitaram a minha identidade de gênero trans não binária”, lembra. AJ passou dois dias ouvindo outros internos batendo nas paredes e gritando palavras sem sentido. O temor só passou quando conseguiu sair: sabia que era o início de um processo que foi melhorando com medicamentos e terapias periódicas.
No contexto da pandemia, as vulnerabilidades presentes ao longo do ciclo migratório se exacerbam, bem como os riscos diante da perda de emprego, da falta de acesso rápido à documentação, das condições de moradia deficientes e da estigmatização dos repatriados nas comunidades de origem, diz o estudo Os efeitos da COVID 19: uma oportunidade para reafirmar a centralidade dos direitos humanos dos migrantes no desenvolvimento sustentável, da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL).
Para Alba Solorzano, uma jovem psicóloga de 23 anos, que agora vive na Espanha, a pandemia afetou especialmente seu emocional. “Vivia em uma prisão domiciliar”, conta. "A convivência no lugar onde eu morava era horrível, nossa proprietária era uma mulher neurótica que não nos deixava sair da residência onde estávamos, que se resumia ao quarto com um banheiro e cozinha”.
Jeanferich Ontiveros relata do Chile que: “A pandemia me deixou desempregado durante cinco meses. Não ter dinheiro, trabalho ou comida desencadeou uma espécie de crise nervosa em mim. Esses cinco meses têm sido os piores desde o início da minha migração (...) Estive a ponto de ir a um posto de saúde para ver se de alguma forma alguém me ajudava na crise nervosa ou ao menos me dava um diagnóstico do que estava acontecendo comigo. Mas o medo de contrair o coronavírus em um hospital me fez evitar ir a um médico”.
A psiquiatra colombiana Luz Rojas constatou essa situação: “Com a pandemia, problemas de saúde mental se agravaram. Atendi pessoas que não tinham sintomas ou que tinham sido capazes de controlá-los e, quando chegou a pandemia, disparou a tendência de sofrer de distúrbios de ansiedade, depressão e distúrbios do sono", relata.
A Universidade do Pacífico do Peru realizou um estudo em abril de 2020 sobre o contexto de trabalho e a saúde mental dos migrantes na pandemia, em que 46% dos migrantes pesquisados apresentavam sinais de ansiedade e 35%, de depressão. Os resultados demonstram que a taxa de emprego tem um impacto direto nesse abalo psicológico, segundo a pesquisadora Marta Luzes. “À medida que diminui a possibilidade de se empregar, piora a condição da saúde mental”.
Para Víctor Reinosa, o panorama por causa da Covid-19 também foi complexo. Foi difícil conseguir emprego na sua área: “Já tinha trabalhado em rádio, televisão, imprensa e chegar aqui e trabalhar como cozinheiro, delivery, trabalhei em quiosque, foi bem difícil”.
A situação acabou melhorando, embora não por muito tempo. “Deixei um trabalho por causa de uma proposta interessante, da qual gostei muito. Mas fiquei doente e perdi esse emprego”. A partir desse momento, Víctor se sentiu em um buraco: “Não queria sair da cama”. Então, por meio de um amigo, conseguiu encontrar um novo trabalho na sua área e tudo voltou a melhorar. “É complicado ficar sozinho em um país, você não tem ninguém para te dar apoio; não é como no seu país, onde, se ficar um mês sem emprego, vai para a casa da sua mãe e não se preocupa com o aluguel”, diz.
A psicóloga Cristal Palacios explica que para os migrantes a pandemia gerou um processo regressivo: muitas das conquistas obtidas, desapareceram diante das dificuldades econômicas geradas pelas medidas para conter o vírus.
Isso reacende os lutos migratórios e aumenta a vulnerabilidade: muitas pessoas que haviam saído dessa zona de sobrevivência e começavam a materializar conquistas tiveram de voltar a sobreviver, o que no nível emocional é muito forte. “É uma perda da cota de liberdade que tínhamos conquistado e a essa perda se soma à perda da saúde e dos entes queridos que morrem por causa do coronavírus”, diz Palacios.
Resiliência é a capacidade das pessoas de enfrentar obstáculos e se tornarem mais fortes durante esse processo. “Não evita a exposição ao acontecimento adverso, mas permite entender a adversidade como um aprendizado, enfrentar a situação e por meio das forças pessoais, proteger sua integridade e forjar um novo comportamento, resistir ao desastre e se reconstruir sobre os fatores adversos”, indica o estudo Resiliência e Estratégias de Enfrentamento em Imigrantes Venezuelanos da Universidade Central do Equador.
A pesquisa sugere que os migrantes estão expostos a diferentes fatores de risco. No âmbito pessoal, a problemas de saúde mental ou físicos, estratégias de comunicação inadequadas, falta de assertividade, consumo de substâncias e alcoolismo, controle deficiente dos impulsos, isolamento. E no social ou familiar, morte de parentes, falta de redes sociais, pobreza, falta de dinheiro, mudanças bruscas, migração, deportação ou repatriamento, discriminação. Tudo isso afeta nossa capacidade de resistir. Mas, ainda assim, seguimos em frente.
Para nós, falar de resiliência implica fazer uma viagem a vários anos atrás. Quando estávamos na Venezuela e exercíamos o jornalismo e tínhamos de contornar a censura de um regime autoritário para informar as comunidades. Apesar das dificuldades, agimos.
Quando tínhamos de morar em nossas cidades e encontrar meios de arcar com as despesas em um país com a maior inflação do mundo, sempre encontrávamos o caminho para isso. Ainda que tenha custado nossa juventude, nossos sonhos.
Quando naqueles dias, antes de embarcar no avião ou no ônibus que nos trouxe, com lágrimas nos olhos, arrumávamos as malas que íamos trazer para um novo país e nos despedíamos de nossas famílias. Johanna foi para Colômbia pelas "facilidades" oferecidas pela nacionalidade dos seus pais; Héctor, para o Peru, porque tinha lido que as condições econômicas eram otimistas na região; e María Laura seguiu para a Argentina com a ideia de fazer um mestrado e exercer o jornalismo.
Adriana, Mariela, Víctor, Christian, Alba, AJ e as outras pessoas cujas vozes aparecem aqui também somos nós. Migrar é um processo que, mesmo nas condições mais favoráveis, implica desenraizamento, mudanças, adaptação, novas culturas e integração.
Diante de um cenário muito hostil com a perda do emprego por ambos durante a pandemia, tanto Adriana Rivas como seu marido se mudaram de Valparaíso para Santiago do Chile e empreenderam na área gastronômica. Isso permitiu pela primeira vez desde o processo migratório alcançar estabilidade econômica, profissional e familiar, mesmo na informalidade.
Adriana Caldera, por sua vez, também abriu uma loja de sobremesas, atendendo em casa e, ultimamente, incluiu pratos venezuelanos no seu cardápio. Tem sido um sucesso: quando tudo parece ruir, ter um local com sabores familiares por perto pode levá-lo por um tempinho para casa e para a nostalgia - ou a certeza - de que, apesar da distância, ainda pertencemos ao lugar que amamos.
“Nossa vulnerabilidade e força interior tem a ver com a interrupção da nossa história de vida”, explica a psicóloga especialista em migração, Constanza Armas. “Uma migração forçada aumenta a probabilidade de desencadear transtornos, porque não há um preparo adequado. Outro aspecto diferenciador é a ideia de não voltar: perdemos o país que conhecemos e isso dói”.
Algum dia voltaremos à Venezuela? É a pergunta que muitos de nós fazemos mentalmente, mas que poucos ousamos pronunciar em voz alta. Migrar não é se deter no passado ou ficar obcecado pelo futuro. É nutrir-se do presente, por mais difícil que este seja.
Embora a maioria dos migrantes esteja exposta a múltiplas situações que afetam sua saúde física e mental, há pessoas ainda mais vulneráveis. Até dezembro de 2020, de acordo com o Unicef, ao menos 1,9 milhão daqueles que saíram da Venezuela eram crianças e adolescentes (poderiam ser mais, já que o número é subnotificado). Suas condições estão bem longe de ser adequadas.
Na Colômbia, as crianças e os adolescentes estão em situação de desamparo, devido à carência de políticas públicas migratórias da Venezuela e da sobrecarga de serviço do lado colombiano. “Os menores de idade têm muitas dificuldades para regularizar sua situação de imigração e documentação, o que limita seu acesso à proteção social, aos cuidados com a saúde, ao desenvolvimento na primeira infância e à educação”, destaca a pesquisa Crianças migrantes, na qual se constata ainda que 46% dos menores estão fora do sistema educativo colombiano, principalmente por falta de documentos.
Mas eles não vivem apenas as dificuldades de adaptação ao novo país. Ligia Bolívar detalha em seu relatório sobre Saúde Mental de venezuelanos em situação de mobilidade que, segundo estudos realizados no Peru, o impacto da migração pode levar a outros comportamentos menos evidentes e regressivos: “voltam a fazer xixi na cama, a chupar o dedo, começam a se comportar de maneiras que já tinham superado em relação ao seu desenvolvimento, porque são respostas normais ao estresse, nas quais buscam reagir do jeito que reagiam anteriormente, quando se sentiam mais protegidos”, explica o estudo.
As mulheres também sofrem situações particulares durante seu processo migratório. “Mais da metade dos cuidados demandados pela população venezuelana é por parte das mulheres”, diz Cubillos. Na sua maioria se refere a questões de saúde reprodutiva. De acordo com o último relatório da Plataforma R4V, atualmente cerca de 35% dos migrantes são mulheres, enquanto 15,3% são crianças e adolescentes.
Por outro lado, os riscos e as situações próprias da migração se somam aos causados pelo isolamento durante a pandemia pela Covid-19. “As condições estabelecidas no marco da pandemia propiciaram um aumento da violência de gênero e da violência doméstica e isso também afetou as mulheres e crianças migrantes venezuelanas”, acrescenta o pesquisador.
As pessoas pertencentes à comunidade LGBTIQ também correm o risco de sofrer violência em seu entorno e no caso de AJ, que se identifica como uma pessoa não binária, foi justamente essa situação que agravou seu sofrimento. “Com a pessoa que era meu companheiro sofri violência física, emocional e psicológica e procurei primeiro o atendimento psicológico, mas depois precisou ser psiquiátrico. A situação piorou com a pandemia”, diz.
Os migrantes vítimas da violência de gênero, muitas vezes devido à falta de círculos de apoio em seus países de acolhimento ou por desconhecimento, têm buscado ajuda na sociedade civil venezuelana, que tem tentado apoiá-los de maneira remota nesses cenários difíceis. É o que comenta Diyuly Chourio, defensora dos direitos das mulheres, na pesquisa Violentadas na Quarentena. Ela recebeu pedidos de ajuda de venezuelanas na Colômbia, no Panamá, no Chile, na Argentina e no Equador. E na maioria dos casos os encaminhou para defensores desses países.
Nesse sentido, o Banco Interamericano de Desenvolvimento, em seu relatório A migração de uma perspectiva de gênero: ideias operacionais para sua integração em projetos de desenvolvimento, recomenda aos Estados que estabeleçam políticas migratórias com perspectiva de gênero que garantam sua preparação e o seu acesso ao mercado de trabalho local, legislação sobre violência de gênero que as proteja, independentemente da sua situação migratória, e políticas de reunificação familiar, entre outras medidas.
Embora existam deficiências nos sistemas regionais de saúde, há organizações e grupos encarregados de liderar os esforços para cuidar dos migrantes: